OS PROCEDIMENTOS ESPECIAIS MARÍTIMOS: Avaria Grossa

Postado em 08/set/2020 por Mõnica Judice

Avaria Grossa

O Código de Processo Civil de 1939 – CPC/39 no Livro V (Dos Processos Acessórios) – Título X (Dos Protestos, Notificações e Interpelações e dos Protestos Formados a Bordo) disciplinava procedimentos marítimos que foram recepcionados pelo art. 1.218 do Código de Processo Civil de 1973 – CPC/73, sendo eles: o protesto formado a bordo (inciso VIII), dinheiro a risco (inciso X), vistoria de fazendas avariadas (inciso XI), apreensão de embarcações (inciso XII), avaria a cargo do segurador (inciso XIII), avaria (inciso XIV) e arribada forçada (inciso XVI).

No Projeto de Lei do Senado – PLS nº. 166/2010 o então art. 1.000, parágrafo terceiro, da mesma forma, previa que os procedimentos especiais mencionados no art. 1.218 que ainda não foram incorporados por lei especial – como no caso dos incisos – deveriam se submeter ao procedimento comum, senão vejamos:

Art. 1000. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogado o Código de Processo Civil instituído pela Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

  • 1o As regras do Código de Processo Civil revogado relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais não mantidos por este Código serão aplicadas aos processos ajuizados até o início da vigência deste Código, desde que não tenham, ainda, sido sentenciados.
  • 2o Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.
  • 3o Os procedimentos mencionados no art. 1.218 do Código revogado e ainda não incorporados por lei submetem-se ao procedimento comum previsto neste Código.

No tocante a evolução da discussão da matéria interessante trazer a baila que na Câmara dos Deputados, o então Projeto de Lei – PLC nº 8.046/2010, oriundo do Senado Federal (PLS nº. 166/10), destacou a questão marítima no Relatório do Deputado Barradas Carneiro, no sentido de que “na tentativa de eliminação de procedimentos especiais que não eram utilizados, o Senado Federal eliminou todos os procedimentos que cuidavam de questões envolvendo direito marítimo (…) se é certo que alguns deles realmente mereciam extinção pela absoluta obsolescência, outros, porém, são bastante utilizados (…) não há razão para serem eliminados (é o caso da regulação de avaria grossa e da ratificação de protesto marítimo)[1].

Nesta perspectiva, tem-se, definitivamente elaborado, o art. 1046 do CPC/15:

Art. 1046. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

  • 1o As disposições da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais, que forem revogadas, aplicar-se-ão às ações propostas até o início da vigência deste Código, desde que ainda não tenham sido sentenciadas.
  • 2o Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.
  • 3o Os procedimentos mencionados no art. 1.218 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e ainda não incorporados por lei submetem- se ao procedimento comum previsto neste Código.
  • 4o As remissões a disposições do Código de Processo Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que lhes são correspondentes neste Código.
  • 5o A primeira lista de processos para julgamento em ordem cronológica observará a antiguidade da distribuição entre os já conclusos na data da entrada em vigor deste Código.

Passa-se, então, a análise dos procedimentos marítimos contidos no art. 1.218 do CPC/73, a fim de verificar a possibilidade de convertê-los em procedimento comum.

Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos regulados pelo Decreto-lei no 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes:

I – ao loteamento e venda de imóveis a prestações (arts. 345 a 349);

II – ao despejo (arts. 350 a 353);

III – à renovação de contrato de locação de imóveis destinados a fins comerciais (arts. 354 a 365);

IV – ao Registro Torrens (arts. 457 a 464);

V – às averbações ou retificações do registro civil (arts. 595 a 599);

VI – ao bem de família (arts. 647 a 651);

VII – à dissolução e liquidação das sociedades (arts. 655 a 674);

VIII – aos protestos formados a bordo (arts. 725 a 729); (Inciso acrescido pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

IX – à habilitação para casamento (arts. 742 a 745); (Primitivo inciso VIII renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

X – ao dinheiro a risco (arts. 754 e 755); (Primitivo inciso IX renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

XI – à vistoria de fazendas avariadas (art. 756); (Primitivo inciso X renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

XII – à apreensão de embarcações (arts. 757 a 761); (Primitivo inciso XI renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

XIII – à avaria a cargo do segurador (arts. 762 a 764); (Primitivo inciso XII renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

XIV – às avarias (arts. 765 a 768); (Primitivo inciso XIII renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

XV – (Revogado pela Lei no 7.542, de 26/9/1986)

XVI – às arribadas forçadas (arts. 772 a 775). (Primitivo inciso XV renumerado pela Lei no 6.780, de 12/5/1980)

Veja-se que são sete os procedimentos especiais marítimos originariamente previstos no CPC/73, na esteira do CPC/39 e não mais no CPC/15.

É inegável que hipóteses de procedimentos especiais marítimos não mais necessitam de regramento na novel legislação processual – e em razão disso, não haveria motivo pelo qual incida o preceito de que deveriam ser convertidos em procedimento comum. É o caso do procedimento especial denominado Dinheiro a Risco. Outros – por seu turno, possuem legislação específica – a exemplo da APREENSÃO DE EMBARCAÇÃO. Porém, ainda há aqueles procedimentos marítimos previstos na legislação processual que merecem um tratamento específico em razão da matéria – não se submetendo ao rito comum. A ver:

A avaria grossa é disciplinada pelos art. 765 a 768 do CPC/39 que, no direito marítimo, significam os danos, as perdas e as despesas extraordinárias que recaiam sobre o navio ou sua carga durante a aventura marítima[1].

Avaria, em terminologia de direito marítimo, é a) toda despesa extraordinária, feita a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente (avaria-despesa); ou b) todo dano acontecido ao navio, ou à carga (avaria-dano). Entenda-se, desde o embarque e partida até sua volta e desembarque (CCOM, art. 761).

Classificam-se em avarias particulares ou simples e avarias grossas ou comum. As primeiras resultam de caso fortuito ou fortuna do mar (CCom/1850, art. 766). As últimas supõe ato volitivo. Em geral os danos causados deliberadamente, em caso de perigo ou desastre imprevisto, bem como as despesas em iguais circunstâncias – caso em que o capitão faz protesto por avaria comum, valendo este como forma de comunicação de conhecimento, do “ ocorrido” [2].

As avarias simples, em principio, resultam de uma deterioração ou danificação trazida ao navio ou à carga por caso fortuito ou por culpa de outrem, importando num prejuízo ao dono da carga ou do navio, indenizável, quando segurado ou por que tenha culpa do fato que os danificou.

As avarias comuns, mesmo quando resultantes de ato voluntario do capitão, tanto podem derivar-se de dano acontecido à carga, ou ao navio, como da despesa extraordinária feita em bem de ambos.

Desse modo, tem como causa não a extensão ou natureza do prejuízo ou dano, mas o beneficio da despesa ou do dano em interesse comum.

O Código Comercial, nos art. 764 e 765 registra inúmeros casos de avarias comuns[3].

O procedimento em comento tem por escopo a regulação de avaria grossa. Via de regra, esse procedimento especial é realizado extrajudicialmente, razão pela qual o próprio art. 783 do Código Comercial estabelece que, caso as partes não nomeiem perito para proceder a regulação, esta seguirá pela via judicial – observado o seguinte:

Art. 765. O capitão, antes de abrir as escotilhas do navio, poderá exigir dos consignatários da carga que caucionem o pagamento da avaria, a que suas respectivas mercadorias foram obrigadas no rateio da contribuição comum. Recusando-se os consignatários a prestar a caução, o capitão poderá requerer depósito judicial dos efeitos obrigados à contribuição, ficando o preço da venda subrogado para com êle efetuar-se o pagamento da avaria comum, logo que se proceda ao rateio.

Art. 766. Nos prazos de sessenta (60) dias, si se tratar de embarcadores residentes no Brasil, e de cento e vinte (120), si de residentes no estrangeiro, contados do dia em que tiver sido requerida a caução de que trata o artigo antecedente, o armador fornecerá os documentos necessários ao ajustador para regular a avaria, sob pena de ficar sujeito aos juros da mora. O ajustador terá o prazo de um ano, contado da data da entrega dos documentos, para apresentar o regulamento da avaria, sob pena de desconto de dez por cento (10%) dos honorários, por mês de retardamento, aplicada pelo juiz, ex-officio, e cobrável em sêlos, quando conclusos os autos para o despacho de homologação.

Art. 767. Oferecido o regulamento da avaria, dele terão vista os interessados em cartório, por vinte (20) dias. Não havendo impugnação, o regulamento será homologado; em caso contrário, terá o ajustador o prazo de dez (10) dias para contrariá-la, subindo o processo, em seguida, ao juiz.

Art. 768. A sentença que homologar a repartição das avarias comuns mandará indenizar cada um dos contribuintes, tendo força de definitiva e sendo exequível desde logo, ainda que dela se recorra.

Verifica-se que o capitão antes de se promover a descarga (“abrir as escotilhas”) é oportuna a exigência de caução. É direito que assiste ao capitão para promover o pagamento da avaria grossa. Não sendo atendido, requererá depósito judicial dos efeitos obrigados à contribuição – na esteira do art. 784 e 785 do CCom/1850. A exigência da caução somente é cabível quando ocorre este tipo de avaria – porque a todos onera, obrigando-os à contribuição geral que atingir.

O processo é preventivo, porque corresponde à pretensão a ser assegurado o pagamento. Se houve recusa judicial da caução, o procedimento é o dos art. 684 e 685; se houve, é consequente ao julgamento da recusa e não admite discussão[4].

O ato pelo qual se promove a verificação da contribuição de cada interessado destinada a realizar a indenização do prejuízo que da avaria se gerou é que se chama de regulação ou regulamento de avaria grossa. É o processo pelo qual – evidenciada a avaria comum – se promoverão todas as operações necessárias no sentido de fixar o valor das perdas, determinando-se a parte de cada coobrigado pela avaria[5].

Por esta razão, acertou o CPC/15 tratar no Título III – Procedimentos Especiais, no Capítulo XIII, a regulação de avaria grossa.

– Da Regulação de Avaria Grossa

Art. 707. Quando inexistir consenso acerca da nomeação de um regulador de avarias, o juiz de direito da comarca do primeiro porto onde o navio houver chegado, provocado por qualquer parte interessada, nomeará um de notório conhecimento.

Art. 708. O regulador declarará justificadamente se os danos são passiveis de rateio na forma de avaria grossa e exigirá das partes envolvidas a apresentação de garantias idôneas para que possam ser liberadas as cargas aos consignatários.

  • 1o A parte que não concordar com o regulador quanto à declaração de abertura da avaria grossa deverá justificar suas razões ao juiz, que decidirá no prazo de dez dias.
  • 2o Se o consignatário não apresentar garantia idônea a critério do regulador, este fixará o valor da contribuição provisória com base nos fatos narrados e nos documentos que instruírem a petição inicial, que deverá ser caucionado sob a forma de depósito judicial ou de garantia bancária.
  • 3o Recusando-se o consignatário a prestar caução, o regulador requererá ao juiz a alienação judicial de sua carga na forma dos art. 895 a 919.
  • 4o É permitido o levantamento, por alvará, das quantias necessárias ao pagamento das despesas da alienação a serem arcadas pelo consignatário, mantendo-se o saldo remanescente em depósito judicial até o encerramento da regulação.

Art. 709. As partes deverão apresentar nos autos os documentos necessários à regulação da avaria grossa em prazo razoável a ser fixado pelo regulador.

Art. 710. O regulador apresentará o regulamento da avaria grossa no prazo de até doze meses, contado da data da entrega dos documentos nos autos pelas partes, podendo o prazo ser estendido a critério do juiz.

  • 1o Oferecido o regulamento da avaria grossa, dele terão vista as partes pelo prazo comum de quinze dias; não havendo impugnação, será homologado por sentença.
  • 2o Havendo impugnação ao regulamento, o juiz decidirá no prazo de dez dias, após a oitiva do regulador.

Art. 711. Aplicam-se ao regulador de avarias os art. 156 a 158, no que couber.

Neste panorama apresentado, tem-se que o procedimento de regulação de avaria é ainda realizado pelo Poder Judiciário quando não firmado o acordo extrajudicial no tocante ao consenso sobre o regulador da avaria grossa (ex-ajustador), restando à parte então a via judicial acima – de modo que não é possível realizá-la através de procedimento comum, mas observando o procedimento específico.

[1] O Código Comercial estabelece que “todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, ou todos os danos acontecidos àquele ou a esta, desde o embarque até a sua volta e desembarque, são considerados avarias”.

[2] DE PLACIDO E SILVA. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. IV. 4a Edição. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 323.

[3] DE PLACIDO E SILVA. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. IV. 4a Edição. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 383.

[4] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IX. 2a Edição. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1959, p. 325.

[5] DE PLACIDO E SILVA. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. IV. 4a Edição. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 387.

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